sexta-feira, 18 de novembro de 2011

Imagens da Felicidade

Uma das definições de histórias diz que elas, ao invés de focar no geral, em situações abstratas ou tendências globais, se preocupam com pessoas e suas experiências dentro desse geral. Por isso, revelam circunstâncias particulares e conseqüências específicas. Narrativas, portanto, focam nas estratégias humanas criadas e usadas para lidar com mudanças, processos e tendências.

O trabalho do fotógrafo Jonathan Harris, Ballons of Buthan, é um exemplo claro dessa definição.



No começo da década de 70, o rei do Butão propôs a medida da Felicidade Interna Bruta. Uma alternativa ao Produto Interno Bruto que, dizem, mede o bem-estar de uma nação. A medida do PIB, entretanto, leva em conta só as transações comercias, o que a torna incompleta para traçar um cenário social real.

A  Felicidade Interna Bruta se baseia em quatro pilares: desenvolvimento sustentável, preservação e promoção dos valores culturais, conservação do ambiente natural e boa governança.


Lógico que meia dúzia de apressados já pegaram o FIB como a solução de todos os problemas. Não é. Mas é revelador como a mensagem butanesa se espalhou pelo mundo. Mostra como o nosso jeito de lidar com o bem-estar ($$$) também está longe de ser o ideal e como as pessoas estão em busca de qualidade de vida real.

A grande questão é que quando se resolve medir alguma coisa, perde-se um pouco o fator humano dela. Sempre empaquei no conceito do PIB nas aulas de geografia. Sabia da sua relevância, mas nunca consegui visualizá-lo na dimensão humana. Para um país,  medidas são essenciais. O problema é quando, nas relação humanas, um passa a interpretar o outro por idéias gerais. Ao medir a felicidade, pode-se esquecer do que vem a ser, realmente, a felicidade para cada um.

Por isso, Jonathan Harris foi muito feliz com o Ballons of Buthan. Ele quis fotografar a felicidade no Butão. Afinal, é muito fácil tirar conclusões sobre como deve ser os habitantes do único país do mundo onde a felicidade é medida. 



Harris entrevistou 117 butaneses. Fez uma série de perguntas relacionadas à felicidade. O que é felicidade para você? Qual é a sua lembrança mais feliz? Conhece alguma piada? Se você pudesse ter um desejo realizado, qual seria? Qual seu nível de felicidade de 1 a 10?  Depois das perguntas, Harris fez as fotografias. Cada habitante entrevistado foi fotografado uma série de vezes. Imagens de rosto, deles segurando o número de balões correspondente ao próprio nível de felicidade, com um balão da cor preferida no qual Harris escreveu o desejo do entrevistado...  Está tudo no belo site do Ballons of Buthan

A minha conclusão após ver as imagens é que nós, humanos, somos mesmo imprevisíveis.

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Da série de fotografias, as que falam dos desejos são as mais tocantes, por realmente revelarem as particularidades de cada um e de um país onde as coisas não são tão perfeitas. Algumas delas estão aí embaixo. 







Impróprio para Menores



"Buceta".

Na primeira vez que Nuno ouviu a palavra, estava sozinho em seu quarto. Chegou aos seus ouvidos pela voz grave do pai, ao ultrapassar a porta fechada do quarto ao lado. A voz não era frequente, mas era o mesmo ruído pesado. Algumas semanas atrás, Nuno chegou em casa aos prantos e machucado. O pai gritou sobre revidar, não levar desaforos para casa, resolver os problemas como um macho. Nuno se esqueceu dos ferimentos. A voz doía mais.

Deve ter sido esta a sensação da mãe. Após o “buceta",  ela chorou. Alto.

Alguém chorar depois de ouvir alguma coisa só pode ter um significado muito ruim ou muito bom. Na última vez que Nuno declarou “eu te amo” para a mãe, ela chorou. Nuno entrou no palco, ao lado de todos os seus colegas de sala. Juntos, gritaram um “eu te amo” sem muita sincronia. Fecharam-se as cortinas. Palmas, muitas palmas. Por uma fresta, Nuno conseguiu ver a mãe esfregar um lenço nos olhos. Quando se aproximou dela, viu todos os indícios. Maquiagem borrada, olhos avermelhados e cílios grudados. Mas o sorriso intrigou Nuno. A mãe explicou sobre o choro de felicidade. .

As lágrimas pós “buceta”, porém, não eram felizes. Os olhos, os cílios, a maquiagem, todas as pegadas estavam lá. O sorriso, não.

Mas os indícios não eram necessários. A voz do pai já deixava tudo muito claro.

Nuno, com dificuldade, pegou uma cadeira, colocou-a na frente de um armário imponente. Subiu, mas o armário continuou imponente. Ficou na ponta dos pés, esticou todo o corpo, o máximo que pode. Pegou um livro pesado e empoeirado que nunca tinha saído de lá. Tentou levá-lo para uma mesa, mas seus braços magrelos não deram conta do trabalho árduo. Nuno abriu o livro no chão. Poeira escondia letrinhas minúsculas. Folheava as páginas com pouca intimidade. Benzidina. Benzido. Benzil. Benzilhão. Mais para frente. Bulático. Bulbáceo. Bulbar. Mais para trás. Bucéfalo. Bucelário. Bucentauro. Bucha. Nada.

A cabeça de Nuno começou a doer. Se lembrou de um risco vermelho de caneta BIC. Um rabisco que obstruía sua plenitude. De todas as palavras do ditado, o risco denunciou a “muchila”. O certo era mochila. Talvez seja assim com “buceta”, pensou. O certo deve ser boceta.

De volta ao livrão. Bode. Bochecão. Bocelão. Bocelar. Bocelim. Bocelinho. Bocelino. Boceta. Enfim. Boceta. Caixinha redonda, oval ou oblonga. Caixa de rapé. Certo aparelho de pesca. Vulva. Nuno franziu o cenho. O pai nunca falou em pescar. Sempre foi misterioso, de poucas palavras, mas não podia ser possível que ele saísse para pescar sem que Nuno soubesse. Ou será que foram as caixas? Mas porque uma caixa ia fazer a mãe chorar? Ele a atacou com uma? E, afinal, o que é vulva, meu Deus? Vulturídeos. Vulturino. Vulturno. Vulva. A parte exterior do aparelho genital da mulher. Geniculado. Gênio. Genioso. Genista. Genital. Relativo a geração. Que serve para geração. Geotrópico. Geotropismo. Geração. Ato de gerar. Conjunto das funções ou fenômenos pelos quais um ser organizado produz outro semelhante. Cada grau de filiação de pai e filho. Linhagem, estirpe, ascendência.

Nuno dormiu sem entender.

No dia seguinte, Nuno, mãe e pai estavam sentados no sofá, como sempre fizeram. Assistiam à TV. A cada dia se afastavam mais. Talvez, daqui a uma semana, fosse preciso comprar um sofá maior. Ela estava em uma ponta, ele na outra e Nuno no meio. A tela exibia uma mulher mais velha e uma mais nova. Do nada, a mais velha começou a bater na mais nova. Bater de verdade. Deu um tapa, vários chutes, jogou ela no chão, continuou a estapear. Chamou-a de nomes que se Nuno falasse perto da mãe seria ele quem levaria o tabefe. Intervalo. Nuno olhos para os pais.

“O que é boceta?”

Expressões de espanto.

“Isso é coisa da sua família!" 
“Esses seus sobrinhos ficam ensinando bobagem para o menino!” 
“Ele só tem sete anos, pelamordedeus!” 
“Fica dando liberdade para fazer o que quiser!” 
“Você nunca está aqui” 
“Tudo que ele pede eu dou!”
 “Mas você nunca está aqui!”

Nuno decidiu nunca mais falar boceta outra vez

Um tempo depois, Nuno, apreensivo,  repetiu a palavra. A mãe e o pai disseram que iam se separar.

“É por causa da palavra?”
“Que palavra?”
“Aquela.”
“Aquela qual? Fala a palavra de uma vez, não sei o que você quer dizer.”
“Boceta.”
“O que?”

Expressões de espanto.

***

A mãe está sentada ao lado de Nuno. Assistem à TV. O sofá continua o mesmo, mas o pai comprou um novo. Hoje, o marido da mulher mais velha que bateu na mulher mais nova beijou uma terceira. E a esposa nem desconfiou.

Gisele ganha o salário e Iriny faz o trabalho

A marca de lingeries Hope deveria repensar os seus gastos com publicidade. Por que perder uma nota com Gisele Bundchen se Iriny Lopes, a ministra da Secretaria de Políticas para Mulheres, faz uma propaganda bem mais eficiente e de graça?


Quando Iriny resolveu reclamar da mensagem sexista na propaganda da Hope, surgiu, como era de se prever, uma divisão. De um lado, os defensores da marca, a turma que achou a atitude da ministra um exagero. Do outro lado, a própria Iriny e seus seguidores. “O comercial dá a entender que a mulher, para se proteger de alguma reação mais agressiva por parte do companheiro, precisa de uma imagem erotizada”, diz a ministra em uma entrevista à Istoé desta semana. Enquanto se desgastam no assunto, quem deve estar rindo à toa é a própria Hope. Afinal, ver um filme publicitário tão preguiçoso e cafona virar assunto do momento deve ter enchido de alegria os corações dos responsáveis da marca.

Porque, convenhamos, a piada da mulher-gostosona-que-consegue-tudo-o-que-quer-do-marido-bobão está com a validade mais vencida do que aquela pomada no fundo do seu armário. É interessante ver como uma marca gasta dinheiro para fazer uma campanha com um conteúdo tão alheio à contemporaneidade como este.

Houve uma época que a piada devia ser genuinamente engraçada. Uma época quando a tal situação, guardada as devidas proporções, era real. Uma época em que a sociedade não era só machista, como era patriarcal e delimitava os estereótipos sociais de uma forma bem mais acentuada. Os homens eram os chefes da família e as mulheres as rainhas do lar. Elas não tinha o dinheiro e estavam presas em um jogo de poder. Para conseguir o que queriam usavam artifícios criativos, mas sutis o suficiente para eles não perderem a pose. A boa comédia é sobre verdades. Ela pega uma verdade da época, normalmente não percebida, e escancara o ridículo dela. Ora, que ridículo é um homenzarrão que se coloca como o chefe da família, mas, no fim das contas, sem perceber, é um bobão manipulado pela esposa, namorada ou amante?

E hoje? Existem ainda espaço para esses estereótipos? A imagem da mulher que usa da sensualidade condiz com o grosso da nossa realidade?

Quando estudei publicidade, estar atualizado era o mantra. Mas a ideia de estar atualizado não é muito bem definida. Estar atualizado não é apenas sobre conseguir dissertar sobre todas as notícias dos jornais do dia. Estar atualizado é mais do que isso. Estar atualizado é conseguir perceber qual é o clima da época. É perceber, através das manifestações artísticas, culturais, sociais, um pouco do espírito atual. E faltou aos profissionais responsáveis pela campanha da Hope uma pesquisa nesse sentido. Hoje em dia, estereótipos como o da Hope estão em baixa, não atraem mais como antes. Muito provavelmente por ser o retrato de uma época que não é a atual.

Daí, talvez, o exagero da manifestação de Iriny. Possivelmente, se ela não tivesse falado nada, a propaganda teria passado em branco. A realidade da mulher é diferente agora. Ela sabe que a Gisele Bundchen de lingerie contando a má notícia para o marido não a representa mais. Esse estereótipo da mulher ter que usar a sensualidade para conseguir o que quer não é mais uma verdade absoluta (se é que algum dia foi). Isso torna a propaganda da Hope inofensiva, ineficaz e, por isso, ruim. E tudo que Iriny fez foi criar defensores para uma propaganda ruim. Talvez eles não estejam defendendo a propaganda literalmente. Talvez estejam defendendo sua capacidade de tirar as próprias conclusões, sem ter um ministro toda vez para ditar o que é certo ou errado.

Os pequenos pacotes de bolotas de amor

Minha visão se embaça quando abro o freezer.

Não era sempre assim. Começou quando parou de abrigar os pequenos pacotes de bolotas de amor congeladas.

A receita da bolota de amor é quase igual à de pão de queijo. Com uma única diferença: as mãos dela.

Misturado com os quinhentos gramas de polvilho doce e os dois copos de leite, alguns mililitros do suor dela.

O sabor do queijo minas meia cura se mistura com o sabor de família.

Bolotas de amor sincero.

Agora, o freezer tem apenas pães de queijo.

O degustador de café


30 minutos ou o seu pedido grátis: por que esta ideia só prejudicou o serviço de delivery

Da alta gastronomia, com jantares feitos por renomados chefs na casa dos próprios clientes, aos sex shops, através da entrega de artigos eróticos, quase todo setor pode ter algo a oferecer para os clientes em busca de soluções “à domicílio”. Por ser uma solução relativamente nova para as áreas citadas, o delivery cria valor ao serviço prestado ou ao produto oferecido. Mas o tempo passa e, ou novo não dá certo, ou ele se estabelece de vez. E se um serviço não for encarado como uma narrativa em desenvolvimento constante, seu valor se perde.

Veja o caso da pizzarias e redes de fast-food. Seus deliveries não são novidade. Ninguém em sã consciência abre uma pizzaria e anuncia um serviço de entrega comum como diferencial. Um serviço de entrega, entretanto, pode não ser comum. Muitos empresários do setor de alimentos rápidos sabem disso. Mas na tentativa de dar valor ao que virou normal, cometem decisões precipitadas que causam sérias consequências e, quem diria, provocam até mesmo a sanção de leis federais.

No início de julho deste ano, a presidenta Dilma sancionou uma lei que proíbe qualquer empresa, empregador ou pessoa física que use o serviço de motoboys a adotar práticas que estimulem o aumento da velocidade. Como, por exemplo, a dispensa do pagamento do consumidor se a pizza, o hambúrguer ou a esfiha não chegar em um tempo pré-determinado. A popularidade do “30 minutos ou seu pedido de graça” foi tanta que a forma do Habib’s tentar se diferenciar em seu serviço de entrega foi reduzir o tempo, ou o chamado “Delivery 28 minutos”. Criativo, não?


O fato é que essa solução foi uma tentativa de injetar alguma novidade nos serviços de entrega e, de certa forma, assume que o benefício do delivery não é apenas entregar o produto em casa. É também (além de outros) entregar o produto em um tempo aceitável. Ou seja, a agilidade também está dentro do valor cobrado e se ela não é cumprida, não vale o preço. Ela esconde, entretanto, um lado obscuro. Enquanto o cliente, o ator final dessa transação, espera satisfeito, os motoboys, como penúltimos, podem ser obrigados a compensar os possíveis atrasos da produção. As consequências você pode ler nesta matéria da revista Piauí.

É, portanto, uma solução que pode por em risco uma vida humana, o que já a torna condenável. Mas se o serviço de delivery tivesse sido pensado um pouco melhor, toda essa pendenga poderia ter sido evitada. Afinal, forçar a entrega de um produto em um tempo determinado cria valor?

O tempo quantificado (30 minutos, 28 minutos) é o lado superficial de uma característica inerente ao delivery e que parece ser um desafio para o homem contemporâneo: o tempo de espera. A não ser que inventem uma forma de fazer pizza em um minuto e um sistema de teletransporte, a pessoa que pede uma pizza pelo telefone ou internet vai ter que esperar, seja 20, 30 ou 15 minutos. E para nós, membros da sociedade da velocidade de informações, a espera pode parecer um suplício.

Dar um produto de graça quando sua entrega ultrapassa os 30 minutos não faz nada em relação à experiência da espera. Assim que pedimos uma pizza, continuamos a espera-las, sem nenhuma informação sobre o seu paradeiro, até que ela chega em nossas casas. Sim, a espera pode ser compensada com o abatimento do valor, mas a experiência continua a mesma. Como uma solução que não muda nada cria valor? Na realidade, pode provocar um reflexo oposto. O cliente tolerante a pequenos atrasos ou que nem se importava muito com o tempo da entrega, passa a perceber o serviço de delivery de uma outra forma que, definitivamente, não o valoriza.

Um dos desafios para criar valor no delivery seria atenuar a experiência de espera, transformá-la em algo um pouco menos sofrido para quem a encara dessa forma. Como fazer isso? Deixar o cliente mais informado durante o tempo entre o pedido e o recebimento é uma forma. Oferecer ao cliente algo que o entretenha enquanto espera é outra. Existe tecnologia para isso. Existe conectividade para isso. A existência de pesquisa e inovação se impõe. Daí, a importância do design de serviços.

Vende-se abacaxi

Ok. Tudo bem. Eu concordo. Posso não ser a coisa mais bonita do mundo. Esse amarelo sujo que me envolve não deve ser algo que te anime muito. E a coroa? Um verde morto que te espeta toda vez que você põe a mão... Mas experimenta tirar a minha roupa. Arranca essa coroa sem dó. Vai tirando essa casca esquisita de mim. Me deixa nu. Pronto. Agora encosta a sua boca em mim. Encosta vai, prometo que não vai se arrepender. Me morde. Me chupa. Viu como sou suculento? Gostoso? Me engole, vai!

Tudo pode dar certo. Mas tem que seguir a receita.


Você está em casa e resolve sair. Quer ir ao cinema. Pesquisa em um jornal ou na internet qual filme e qual sessão pegar. Decide ir naquele que está em exibição em todos os shoppings da cidade. Pode ser porque tem aquele ator que você gosta, ou o título te chamou a atenção, ou, se bobear, a resumidíssima sinopse do jornal te atraiu. Talvez pode ser a continuação daquele filmaço. Ou a adaptação do livro sensacional que você leu alguns meses atrás.

Você chega no shopping. Se for de carro, paga X no estacionamento. Na bilheteria paga 2Y pelo ingresso (o seu e de sua namorada ou namorado). Claro, não falta a pipoca tamanho G e a Coca-Cola tamanho GG, tudo isso pelo valor Z.

Depois de uma hora e meia, duas horas, você sai do cinema satisfeito. Se chegou a pensar no dinheiro, concluirá que o gasto de X + 2Y + Z valeu a pena. Mesmo se o filme for aquele que você já sabe o final no primeiro minuto da projeção, que tem personagens que você já viu mais de quinhentas vezes em outras obras diferentes, aqueles clichês que reconhece desde sempre. Sim. Pagou feliz para ver algo que você sabe como é, sabe como termina, já viu em trocentas outras oportunidades e não traz nada de novo. E não só você. Milhões de pessoas também tiveram um gasto parecido.

No início de "Tudo Pode Dar Certo", Boris, personagem de Larry David, coloca você, eu, o público, no foco da discussão. Ele olha para a câmera e diz: "Há uma plateia lotada olhando para nós. Eles pagaram grana alta pelos ingressos para que um idiota de Hollywood possa comprar uma piscina maior". E questiona o que você está fazendo sentado na sala de cinema: "Por que querem saber a minha história? Nos conhecemos? Nos gostamos?"

Pelo início, já é perceptível o grande objetivo de "Tudo Pode Dar Certo". Mas, como em muitas obras de Woody Allen, o tema pode passar despercebido e o filme ser absorvido como uma comédia engraçada e passageira. Também é assim com "Vicky Cristina Barcelona". Diálogos inspirados, personagens interessantes e situações cômicas não decepcionam os que estão à procura de um filme agradável, feito para rir. Mas "Tudo Pode Dar Certo" é mais.



O filme, ao longo de sua duração, escancara uma grande crítica à indústria hollywoodiana e ao público de cinema que ela criou. Aliás, ninguém melhor que Allen para falar sobre isso: um diretor novaiorquino, que não tem público no seu país e cujos projetos nenhum produtor americano está muito disposto a bancar.

Para realizar sua crítica, Allen brinca com a mesma fonte daqueles que questiona. Mas faz de forma consciente, proposital, exagerada e sarcástica. Essa escolha torna "Tudo Pode Dar Certo" uma grande obra. Se o público gasta seu dinheiro feliz com um filme-padrão, então é isto que eles terão.

O roteiro de qualquer bom filme precisa de um conflito. Mas um filme-padrão precisa deixar o conflito muito claro. Ele subestima seu público ao achar que o espectador não vai perceber algo um pouco mais sutil. Ora, quer conflito mais claro do que o relacionamento entre Boris, um velho, novaiorquino, hipocondríaco, mal-humorado, sarcástico, suicida (David) e Melody, uma garota do interior de 21 anos, ingênua, meio tapada, de coração maior que o mundo e feliz da vida (Evan Rachel Wood)? Em filmes mais clássicos, o personagem sofre uma mudança. Vai passando por episódios que o transformam. Começa de um jeito e termina de outro. Nas boas produções, a mudança é feita com personalidade, charme, inteligência e respeito ao público. No filme-padrão ela é óbvia e inverossímil. Em "Tudo Pode Dar Certo", a personagem de Patricia Clarkson, mãe da garota vivida por Evan Rachel Wood, começa sua participação como o clichê da mulher do interior: brega, religiosa, alcóolatra e preconceituosa. Ela vai para Nova York à procura da filha e, em questão de algumas cenas, vira o clichê da artista: liberada sexualmente, se relaciona com dois homens ao mesmo tempo, usa bandana na cabeça e é blasé. A mesma coisa com a personagem de Wood. Se no início Melody é a garota tapada que não fala nada muito profundo, do meio para o fim de "Tudo Pode Dar Certo" começa a proferir as teorias de Boris, mesmo não fazendo muito sentido no contexto em que ela as diz.

Os filmes-padrão também abusam dos clichês e personagens estereotipados. Allen também abusa, conscientemente e de forma crítica, dos estereótipos. Da mulher do interior, do gay (decorador, amante da arte), do sedutor (carismático, charmoso, bonito, insistente, vive em uma casa flutuante). E mais. O diretor brinca com uma das coisas que mais me irrita nos filmes-padrão. Neles, tudo é tão esquemático e fabricado que não há nenhum charme, autenticidade e personalidade. Para parecer que é original e fazer com que o público se sinta inteligente e, ainda por cima, conseguir amarrar tudo que está solto, esse tipo de obra usa o artifício do final surpreendente. Algo cai do céu para fechar todas as pontas. Você percebe isto em "Tudo Pode Dar Certo" quando algo, literalmente, cai do céu.

Mas a grande tacada de mestre de Allen é colocar em questão o grande criador de um filme-padrão. O roteirista-padrão. O roteirista, em uma definição bem rápida, é aquele que cria a história e os personagens. O roteirista-padrão cria, conscientemente, os personagens estereotipados, o conflito óbvio, a mudança inverossímil, os clichês. Ele sabe que está desenvolvendo uma trama que não tira o espectador de sua zona de conforto. Mas faz mesmo assim, pois é o que parece dar retorno para os produtores de Hollywood. É muito inteligente, portanto, a escolha de Larry David como o protagonista de "Tudo Pode Dar Certo" e é mais inteligente ainda a postura do personagem ao longo do filme.

David foi roteirista de "Saturday Night Live" e "Seinfeld", além de escrever e protagonizar o seriado "Curb Your Enthusiasm". Em "Tudo Pode Dar Certo", seu personagem, Boris, se autoproclama como um ser superior, um gênio. Também se dirige ao público várias vezes e todos os outros personagens pensam que é uma atitude insensata. No fim, ao conversar conosco, ele explica: "Viu? Sou o único que vê a situação inteira . É isso que eles querem dizer com gênio".

Ora, o roteirista-padrão é aquele que conhece os ingredientes de um filme-padrão, sabe como usá-los, sabe que não resultarão em um filme diferente de vários outros que já existem e sabe que, mesmo assim, terá um bom público, que irá pagar para ver repetecos. E na visão da indústria hollywoodiana, um cara que conhece os ingredientes e sabe fazer a receita que dê retorno financeiro, só pode ser um gênio.

A importância de X-Men para o futuro da Marvel


A franquia “X-Men” parece cumprir uma função essencial no departamento de cinema da Marvel. O primeiro filme, dirigido por Bryan Singer e lançado em 2000, praticamente abriu as portas para a tradicional empresa de quadrinhos se aventurar nas telas grandes e construir o seu império cinematográfico. Não foi o primeiro a chegar aos cinemas (“Blade” e “Howard, The Duck” foram lançados antes), mas certamente foi a primeiro a se associar com mais força à marca Marvel e levá-la para um público mais expressivo em números.

Depois de “X-Men”, vieram “Homem-Aranha”, “Homem de Ferro”, “Hulk”, “Demolidor”, “Thor” e outros.  A chegada de "X-Men" nos cinemas é resultado de uma co-produção entre Marvel e Fox. Seu sucesso abriu as portas para outros estúdios se associarem à Marvel ("Homem-Aranha, "Demolidor") e a própria Marvel passar a produzir no cinema sozinha ("Homem de Ferro", "Thor", "Hulk"), através da Marvel Studios


Hoje, a marca é reconhecida e aparentemente estável no audiovisual. Aparentemente porque o grande problema de uma marca que cresce e ganha dinheiro demais é sacrificar uma visão empreendedora , sem riscos, e passar a repetir os mesmos passos que a fez juntar seus milhões.

Apesar de ser uma das primeiras franquias da Marvel a chegar aos cinemas, “X-Men” não é a mais rica. Enquanto os filmes da trilogia mutante nunca ultrapassaram a barreira de US$ 500 milhões nas bilheterias, os longas do “Homem-Aranha” chegaram ao redor dos US$ 800 milhões. Não que US$ 500 milhões sejam ruins, mas já que dá para fazer 800, por que não aproveitar? O que se viu, então, foi a consagração de “Homem-Aranha” como o produto “Marvel” e a subsequente repetição de sua narrativa.

O homem imaturo que se vê em uma realidade diferente, causadora de seu amadurecimento. Há o interesse amoroso, com a função de levar o filme para o romance e, algumas vezes, comédia romântica. Não é assim nos carros-chefe da Marvel Studios ? “Homem de Ferro”, “Thor” e “O Incrível Hulk”? Não é essa a impressão dada pelo trailer de “Capitão América”? Não ficamos sentados no cinema até o fim dos créditos pois sabemos que um produto Marvel tem sempre uma surpresinha final? É fácil identificar filmes da Marvel, além de seus heróis. E funcionam, certo? “Homem de Ferro” continuou a trajetória de lucros, assim como “Thor”. E, acima de tudo, são filmes divertidos.

Porém, a cada filme, a receita narrativa fica mais clara e a falta de frescor cada vez mais identificável. Certamente trata-se de uma tendência que pode condenar o “produto Marvel”. Afinal, “Homem de Ferro” lucra, mas não chega aos pés do fenômeno que foi o último “Batman”, da DC Comics e totalmente alheio ao estereótipo dos filmes de heróis. “Thor” lucra, mas sua arrecadação é menor que a de “Velozes e Furiosos 5”, o quinto filme de uma franquia que nem é tão tradicional assim.

É nesse cenário que surge “X-Men: Primeira Classe”, um novo filme e recomeço da franquia. Remonta as origens do grupo de mutantes, através das histórias do Professor Xavier e Magneto que, em um dado momento, se cruzam. Cada um deles lida com seu gene mutante da forma que a vida lhes reservou. Eric Lensherr viu a mãe morrer na sua frente e foi explorado por seus poderes mutantes. Charles Xavier teve uma vida rica financeiramente e, por isso, cheia de possibilidades, dentre elas, estudar a sua própria característica excepcional. O primeiro vê um mundo hostil aos mutantes, de impossível melhora, já que humanos, cegos em seus preconceitos, nunca conseguiriam absorver a ideia de poderes extraordinários. Xavier também percebe esse mundo hostil, mas acredita que existe esperança, que é possível a convivência pacífica entre humanos e mutantes. Apesar dos pensamentos distintos, Eric e Xavier se se tornam amigos em um primeiro momento, unidos pela causa mutante.

Daí surgem as diferenças entre “X-Men” e outros longas da Marvel os "produtos puros" da Marvel Studios. “X-Men” não é um filme sobre um personagem específico, não existe um protagonista propriamente dito. É um filme sobre um tema: a aceitação. Mas não a aceitação de mutantes por humanos, humanos por mutantes ou mutantes por outros mutantes. Essa foi a questão tratada nos filmes anteriores. Em “Primeira Classe” o mote é a aceitação dos mutantes por eles mesmos e, a partir do momento que ela ocorre, cada um lida com a própria existência e o mundo ao redor - que a influencia, de uma forma particular. Por isso, não dá para dizer que Magneto ou Xavier sejam os protagonistas do longa. O verdadeiro protagonista, se é para achar um, é a relação entre eles. É ela que, ao longo do filme, percorre um trajetória de mudança e provoca as mudanças nos caminhos de outros personagens.

Por isso que, se alguns personagens parecem rasos ou pouco dimensionais, é porque eles estão a serviço de um tema maior. Afinal, são muitas figuras que desfilam em “X-Men: Primeira Classe” e quase todas elas tem uma certa profundidade, ou seja, não são enfeites, como era a Mística e a Tempestade nos filmes anteriores. A Mística aqui, interpretada com talento por Jennifer Lawrence, é uma personagem atormentada por sua aparência, incomodada por não poder (ou conseguir) assumir o seu verdadeiro eu, por mais que queira. Toda a sua trajetória é reflexo do que sente.

Através de interessantes soluções visuais, alguns personagens menores conseguem ir além de adornos narrativos e complementam a história de uma forma mais consistente. Em uma única sequência, já conseguimos perceber que a mutante Angel Salvadore é uma menina desconfiada que, provavelmente, foi muito explorada na vida e que Havok é uma espécie de atrevido de bom coração. Claro que não se tratam de soluções geniais, mas são necessárias para o tema maior e, mais importante, são eficazes.

É esperado, portanto, que com tanto personagens, o roteiro de Matthew Vaughn, Jane Goldman, Zack Stentz e Ashley Miller não tivesse uma profundidade almodovariana para cada um. E, claro, não se trata de algo perfeito. Poderia ser um pouco maior. Talvez, se a história fosse concebida como uma trilogia, o resultado seria mais satisfatório em termos narrativos. Há alguns momentos um pouco encavalados aqui e ali, para deixar claro o que está se passando no interior dos personagens. Mas, o fato é que funciona para a construção do todo, da jornada dessa relação entre Magneto e Xavier e seus reflexos. Acreditamos na escolha de cada personagem, porque eles foram minimamente trabalhados nos minutos anteriores. O diretor Matthew Vaughn também fez uma ótima escolha ao colocar cenas reais da época do longa, como os pronunciamentos de John Kennedy (o filme é ambientado na década de 60, no auge da Guerra Fria).



Não há em “X-Men: Primeira Classe” um ingrediente claro que remeta ao “produto Marvel”. A narrativa é diferente. Aliás, assim como “Batman”, nem parece um filme de super-heróis. Está mais para um thriller com personagens mutantes.

Daí voltamos à importância da série “X-Men”. Ao sair da sala, me informaram que há uma preocupação na bilheteria de “X-Men: Primeira Classe”. Afinal, a divulgação realmente não está das melhores. E, como já comentado, a narrativa difere de outras de super-heróis por aí. Mas, por mais que a publicidade do longa merecesse um esforço maior, talvez seja um filme com a função de teste.

É uma suposição baseada em dados não confirmados, na verdade. Não consegui encontrar números oficiais, mas rumores da web dizem que o orçamento de “X-Men: Primeira Classe” foi de US$ 80 milhões. Não é confirmado, mas tudo indica que não foi orçamento mais polpudo de todos os tempos, até mesmo pelo próprio desgaste da franquia nos cinemas e pela escolha de Vaughn, um cara que já provou fazer coisas muito bacanas com pouco dinheiro (“Kick-Ass” custou US$ 50 milhões).

O fato é que o primeiro “Homem de Ferro” custou US$ 140 milhões, o segundo ficou na casa dos US$ 200 milhões, “Thor” foi realizado com US$ 150 milhões e, no fim das contas, são filmes muito parecidos. Como disse, são divertidos, mas um dia cansa. O próprio Vaughn deu algumas declarações ao jornal Los Angeles Times, indicativas do particular estado dos filmes de super-heróis. Segundo ele, ao explicar por que aceitou fazer o filme, o gênero não dura por muito mais tempo.

“Está com hora marcada e em alguns casos o controle de qualidade não é o que deveria ser. As pessoas estão ficando cansadas. (...) Sempre quis fazer um filme de super-heróis de alto orçamento e acho que ultrapassamos o Rubicon (Vaugh usa a palavra Rubicon no sentido de ‘caminho sem volta’) em relação aos filmes de super-heróis. Acho que a oportunidade de dirigir um ocorrerá mais duas ou três vezes. Depois, o gênero vai morrer por um tempo pois o público já o engoliu demais. É um campo cheio. Cheio demais.”

Pode parecer pessimista, mas é um panorama que parece se formar por motivos já expostos. É claro, portanto, que Vaughn não faria o mesmo filme de sempre. E, possivelmente, a Marvel a Fox, ao escalá-lo, não estivesse esperando o mesmo filme de sempre. Afinal, ele foi selecionado pela própria empresa para dirigir “X-Men: O Confronto Final”, antes de cair nas mãos de Brett Ratner. Em entrevista ao jornal Daily Telegraph, antes de ser escalado para realizar “X-Men: Primeira Classe”, Vaughn revelou porque decidiu abdicar da direção do longa anterior.

“Não tive tempo para realizar o filme que gostaria. Tinha uma visão sobre como deveria ser e queria ter a certeza de que estava fazendo um filme tão bom quanto ‘X-Men 2’. Sabia que não iria acontecer e vi que não era a coisa certa para mim. Foi uma decisão difícil, porque era uma puta oportunidade. Mas estava tentando construir uma carreira como diretor e não queria ser conhecido como ‘o cara que fez o filme ruim dos X-Men’.”

Daí a Marvel Fox vem e o chama para dirigir “X-Men: Primeira Classe”? Tem coisa aí, certo?  


Temos, então, um diretor que consegue fazer obras muito divertidas com pouco grana e com frescor. Dessa forma, “X-Men: Primeira Classe” é um filme com poucas cenas de ação e efeitos especiais menos espetaculares. Mas nunca é menos envolvente. Até mais, pois, aqui, nos importamos muito com seus personagens e o perigo parece real.

Além disso, “X-Men” é uma franquia que permite um risco com segurança. Primeiro porque não estamos falando de algo totalmente desconhecido pelo público. A série é notória e só o nome “X-Men” já chama a atenção. A forma como a história é desenvolvida desde sempre já diferencia da de outros personagens da Marvel. Enquanto “Thor”, “Homem de Ferro” e “Homem-Aranha” são personagens marcantes, a força de “X-Men”, por maior que seja o carisma de Wolverine, está no grupo. Dessa forma, as narrativas dos filmes são naturalmente diferenciadas. E o fato de "X-Men" ser  um produto híbrido, co-produção da Marvel com a Fox,  explica algumas soluções criativas diferentes das do produto Marvel "puro".

Por mais que Vaughn fale da morte dos filmes de super-heróis, acredito que ele estava muito consciente da importância dos mutantes para o gênero. Posso estar sendo extremamente otimista ao falar isso, mas talvez o seu filme abra  os olhos da Marvel Studios para um novo ângulo de narrativa ou ajude a criar uma ideia no público de que os longas de super-heróis ainda podem surpreender. Afinal, a Marvel é uma empresa e como toda grande empresa, vez ou outra, é preciso arriscar. O público muda e se cansa, e apostar eternamente em uma mesma fórmula é um dos grandes erros e razão da morte de muitas empresas.


Enfim, enquanto existir alguém disposto a recriar e reinventar a franquia do “X-Men”, os super-heróis cinematográficos respiram mais aliviados.


ATUALIZAÇÃO 04/06 12:28: O leitor Alexandre Luiz, nos comentários, disse algo de extrema importância que deixei passar na primeira versão do texto. "X-Men: Primeira Classe"é uma co-produção Marvel e Fox e a segunda toma boa parte das decisões. Há algumas correções (e elas estão destacadas) e novas informações no artigo em função disso.


Originalmente publicado aqui , no site Cinematório

A narrativa sacrificada

Apesar de serem bem diferentes a princípio, há uma semelhança entre o seriado "Glee" e "Comer, Rezar, Amar" no que diz respeito a Ryan Murphy, criador do primeiro e diretor e roteirista do segundo. Murphy não se leva nem um pouco a sério. Quer apenas divertir. E sacrifica a sua narrativa em nome desse entretenimento. Em outras palavras, suas histórias são apenas uma desculpa para cenas divertidas ou que causam bem-estar nos espectadores.



Vejamos o caso de "Glee". Seu pontapé inicial é dado por um professor de espanhol que tenta reerguer o coral do colégio onde trabalha (e onde estudou) que, um dia, foi motivo de orgulho. O projeto atrai uma série de alunos talentosos. Ele são, porém, os típicos losers americanos, minorias, nerds etc. Como se trata de um colégio conservador, o professor percebe que o projeto só atrairia financiamento se alguns alunos populares, bonitos e fortes se juntassem a eles.

Se "Glee" for analisado friamente, é perceptível que não tem uma estrutura sólida. Os personagens mudam demais. Só para deixar um exemplo, há um episódio no qual Rachel Barry, a protagonista, se apaixona perdidamente pelo professor. Em nenhum momento anterior ela deu a menor pista que sentiria qualquer afeição por ele. Mas, como é um episódio de baladas românticas, ninguém achou estranho mudar completamente a personalidade de um personagem se é para o bem da música. Seria algo como se Homer, em um episódio dos Simpsons, deixasse de ser o bobalhão que é e virasse um poço de sensatez.

É arriscado mudar a personalidade dos personagens em seriados. É um produto narrativo criado para durar um tempo maior. Portanto, quem o acompanha, se afeiçoa pelos personagens do jeito que eles são e uma mudança é um risco. Mas, em "Glee", a sensação que dá é que os episódios são criados a partir das cenas musicais e de referências à cultura pop. Dessa forma, sacrificar o roteiro em nome da diversão parece não ser um problema para Murphy.



Em "Comer, Rezar, Amar" existe a mesma falta de preocupação com a história em nome de um outro objetivo: fazer o público se sentir bem. É essa a intenção quando Liz Gilbert (Julia Roberts), na Itália, devora uma pizza inteira sem culpa, percebe que a numeração da calça que usava aumentou e conclui que “tudo bem, o mundo não mudou porque ela engordou, a vida não acabou porque ela não seguiu as regras da beleza”. Liz, ao longo do filme, aprende a curtir os prazeres da vida e percebe que tem muita coisa boa a se tirar disso. É um filme que tenta dar aquela sensação de espírito revigorado, de alma satisfeita. O que não surpreende, porque é o que a gente espera de um livro de auto-ajuda.

Daí nasce o perigo das adaptações desse tipo de obra. Não li muitas, mas elas não tem muito de visual. É, basicamente, um autor dando conselhos a partir de uma teoria qualquer ou relatando experiências pessoais que, de alguma forma, acreditam inspirar as pessoas. E, provavelmente, dão a sensação de saciedade, afinal, são livros que normalmente encabeçam a lista de mais vendidos. Se alguém resolve adaptar um livro de auto-ajuda para o cinema é preciso pensar em certos aspectos. Um roteirista pode adaptar a lista telefônica, se quiser. Mas, se vai se arriscar a isso, seria preciso um ponto de vista, uma história a ser contada e a ideia de que o cinema é uma arte, acima de tudo, visual.

Passamos quase duas horas e meia vendo a personagem de Julia Roberts em busca de equilíbrio. Mas como Ryan Murphy parece incapaz de demonstrar sua mudança através de atitudes, do desempenho de Roberts ou de qualquer outro artifício visual, ele se volta para o texto. Tudo que está mudando na vida de Gilbert é colocado através de diálogos. Ela e outras personagens parecem ser pseudo-gurus ambulantes. Mas as atitudes de Gilbert, no começo da viagem para o fim da viagem, não parecem ter uma mudança significativa. Por mais que ela fale, é difícil acreditar que algo realmente mudou.

Daí, retorno à comparação entre "Glee" e "Comer, Rezar, Amar". Se "Glee" sacrifica sua narrativa pela diversão e pela cultura pop, "Comer, Rezar, Amar" (o filme) pega de "Comer, Rezar, Amar" (o livro) uma narrativa que já não tinha como dar muito certo no cinema, apenas em nome do bem-estar. Mas a diferença é que "Glee" consegue se sustentar como um produto de entretenimento (superestimado, que não merece metade dos prêmios que ganha, mas, mesmo assim, divertido) com suas canções e referências. Já "Comer, Rezar, Amar" pode até enganar com suas mensagens de equilíbrio e de "busca do 'eu' interior". Não esconde, entretanto, um filme longo, superficial e uma protagonista com quem ninguém se importa muito e que não existe a favor de uma história. A jornada de Gilbert pode funcionar como um livro de auto-ajuda. Mas como cinema é frustrante.

O cinema que saiu do armário


A derrota de O Segredo de Brokeback Mountain na principal categoria do Oscar para Crash: No Limite, em 2006, representou algo além da surpresa de um favorito ser desbancado por um azarão. Não que o filme de Ang Lee precisasse de uma estatueta dourada para provar o seu valor. Mas a ideia de uma obra sobre o amor de dois homens receber a consagração máxima da indústria hollywoodiana parecia um sinal de portas abertas para a representação do gay no cinema após um tortuoso caminho na mesma indústria.

Foram anos de um cinema americano reprimido. Primeiro, as obras de temática gay eram reservadas apenas a um cinema underground. Ou então, os personagens homossexuais eram claramente representantes da subversão, da degradação, do sofrimento e da clandestinidade.

Porém, após a explosão da AIDS, era preciso que o sexo saísse da clandestinidade. Em Hollywood, a AIDS passou a ser associada à morte. As mulheres fatais se tornaram constantes no arsernal do cinema americano. Atração Fatal, filme de 1985, de Adrian Lynne, é um belo exemplo. Alex Ross, personagem de Glenn Close, é a grande metáfora da AIDS. É a ideia de que relações promíscuas e extraconjugais podem levar à morte. O sexo se tornou controlado. E, com este controle, os homossexuais não podiam mais ser os “clandestinos” que o moralismo hollywoodiano e sua “estética heterossexual” tentaram propagar. Hollywood podia, portanto, representá-los de outra forma.

A partir daí houve uma mudança na imagem do homossexual na indústria hollywoodiana. O que não quer dizer, entretanto, que seja uma imagem despida de um estereótipos. Os personagens gays se tornaram coadjuvantes engraçados, carismáticos e sensíveis. Passaram a ser retratados com sensibilidade e, alguma vezes, até piedade. O clichê do gay se tornou comum no cinema. Woody Allen brinca com isso em "Tudo Pode Dar Certo". No filme, um dos personagens fala que ser gay é uma abominação por ir contra as leis de Deus. Recebe a seguinte resposta:

" - Deus é gay.
  -  Ele não pode ser. Ele fez o universo perfeito, os oceanos, os céus, as flores lindas e as árvores em todos os lugares.
  - Exatamente. Ele é um decorador"

Surgiu o gênero GLS, com sua temática abertamente homossexual e seus festivais. A visão de dentro começa a ter um espaço maior. Porém, são filmes que acabam, em sua maioria, destinados a exibições limitadas e distribuição independente. Hollywood, porém, ainda não estava tão interessada em se arriscar no tema.

“O Segredo de Brokeback Mountain” parecia representar uma quebra na postura da indústria hollywoodiana. Sim, um filme pode ter dois homossexuais como protagonistas. Sim, esses personagens podem ter defeitos, não precisam esbanjar carisma. Sim, um romance gay pode ser o fio no qual este filme se desenvolve. Sim, este filme pode ser exibido em um cinema de shopping. E sim, esse filme pode ser indicado ao Oscar e ter chances de vencer.

Mas, os anos nos quais os filmes gays foram sinônimos de cinema underground ou independente ainda reverberam. Conversando com um amigo sobre O Segredo de Brokeback Mountain, ele me disse que não gostou do filme porque “pelo tema, tinha que ser mais ousado”. Será, então, que um filme de temática homossexual não pode ser normal? Cinema clássico não pode ser gay?




E aí que entra “Minhas Mães e Meu Pai”. No filme, os dois filhos adolescentes resolvem procurar o pai, ou melhor, o homem que doou os espermas para as suas mães, Jules e Nic. O longa de Cholodenko é simples. A história da família feliz perturbada por um elemento de fora já foi contada e recontada milhares de vezes. O casal formado por um viciado em trabalho e por um indivíduo inconstante (Annette Bening interpreta o primeiro tipo e Julianne Morre ficou com o segundo) também já foi retratado no cinema antes.

Não existem grandes novidades em “Minhas Mães e Meu Pai”. Apenas o fato de ser um filme com duas personagens lésbicas centrais, Jules e Nic, cujas sexualidades não são determinantes para a narrativa. O filme é sobre a família. O longa, entretanto, não é apenas uma tentativa de Cholodenko dizer que os homossexuais podem ter uma vida normal, uma família como outra qualquer. A diretora mostra que o fato de um filme ter personagens abertamente gays, não torna obrigatório o enquadramento do longa no gênero GLS,  sua narrativa não precisa ser sobre a sexualidade ou preconceito.O filme pode ser tradicional, pode ser simples. Se Cholodenko conhecesse bem a tênue linha que separa o tradicional do clichê, teríamos um grande e representativo filme.

Com seus chavões, “Minhas Mães e Meu Pai” é um bom longa. Inofensivo, passageiro, divertido e que emociona algumas vezes. Hoje, pode até ter a sua relevância, o que explica o sucesso de crítica e público que vem alcançando. Mas, desconfio, será um filme que não irá envelhecer bem. Outros, tão bem intencionados quanto, porém, melhor resolvidos narrativa e cinematograficamente, deverão surgir. E depois que surgirem, talvez nem nos lembremos mais de Jules e Nic.

A obsessão da narrativa americana por nobres heróis

Män som hatar kvinnor, Flickan som lekte med elden e Luftslottet som sprängdes são os títulos originais dos livros da Trilogia Millenium, escrito pelo falecido Stieg Larsson. No Brasil, foram batizados pela Companhia das Letras como Os Homens Que Não Amavam as Mulheres, A Menina Que Brincava com Fogo e A Rainha do Castelo de Ar. Traduções quase fiéis. Há um pequeno desvio da fidelidade no terceiro livro, apenas. Literalmente, o nome sueco significa algo como "O castelo que ruiu".

Nada comparado aos nomes escolhidos para as edições em língua inglesa da trilogia: The Girl With the Dragon Tatoo (A Garota com a Tatuagem de Dragão), The Girl Who Played With Fire (A Garota que Brincava com Fogo) e The Girl Who Kicked the Hornes´s Nest ( algo como A Garota Que Chutou o Ninho da Vespa - eu sei que existe uma palavra melhor para substituir este 'kicked', mas, no momento, não me vem à mente).

Em um resumo muito porco, a trilogia inicia com a investigação do desaparecimento da sobrinha de um magnata por um jornalisa, Mikail Bloomkvist, e uma hacker antissocial, Lisbeth Salander. Ao longo dos três livros, os personagens são envolvidos em crimes relacionados ao tráfico de mulheres e abusos do poder. 

Quando começamos a ouvir notícias sobre o sucesso da obra de Larsson, os títulos americanos eram apresentados como originais. Como o sueco anda em falta na carga horária das escolas, tratar um livro como The Girl With The Dragon Tatoo é mais simples do que tratá-lo como Män som hatar kvinnor.

Enfim, li Os Homens Que Não Amavam as Mulheres com o The Girl With the Dragon Tattoo na cabeça. O incômodo foi inevitável. Qual era a razão para este título nas publicações para a língua inglesa? O primeiro livro não é sobre Lisbeth Salander, ela não é a protagonista isolada e muito menos a heroína. O fato de ter uma tatuagem de dragão é mencionado algumas vezes, mas não é determinante para a história.

A narrativa clássica conhece a importância de um herói, aquele personagem que podemos não concordar em relação às atitudes, mas nos identificamos e torcemos por ele. Indiana Jones, Bourne, Harry Potter, Batman e outros. No caso dos livros de Stieg Larsson, era preciso deixar claro quem era o herói.

Longe de mim me opor aos heróis. São vitais para a narrativa. Mas a escolha americana dos títulos da trilogia Millenium engana um pouco os leitores. Como disse, o propósito parece ser não deixar dúvidas da existência de alguém para os leitores torcerem. A impressão que passa, entretanto, é a de uma série de três livros separados, unidos por uma personagem protagonista, a "The Girl", que vive aventuras diferentes em cada um deles, com início, meio e fim.

Não cometa este engano. Os livros de Larsson devem ser lidos como uma obra única. O primeiro é até completo. Se você ler Os Homens Que Não Amavam as Mulheres terminará satisfeito. Você pode não gostar, mas o completará com uma percepção de início, meio e fim. Mas, ao ler A Menina Que Brincava com Fogo e A Rainha do Castelo de Ar, será possível perceber que se trata de uma grande história de mais de 1500 páginas.

Larsson deveria saber que vender um livro de 1500 páginas seria como exibir um filme de 7 horas no cinema. E devia conhecer a necessidade de uma boa impressão da estréia para a aprovação de uma possível segunda parte. Lançar o primeiro livro apenas como o trecho de uma grande aventura seria arriscado. Poderia ser visto como um trabalho sem finalidade ou objetivo. Quando Larsson escreve Os Homens Que Não Amavam as Mulheres como uma obra completa, ele dá a satisfação de jornada completa aos seus leitores. Mas, ao escrevê-la, parece ter sempre em mente que se trata de um trabalho maior.

Talvez, pela percepção errada, me incomodei tanto com o segundo livro, A Menina Que Brincava com Fogo. Parecia que ia do nada para lugar nenhum. Mas, na verdade, era o meio de uma enorme história.

Lisbeth Salander é sim a heroína - da trilogia inteira, não de um ou outro livro - mas não no sentido que o título em inglês tenta nos fazer pensar. Não é a mulher destemida que resolve todos os problemas, não é guiada por ideais altruístas, tem atitudes bem duvidosas e questionáveis. É apenas uma personagem que se vê no centro de uma intrincada teia e quer que parem de encher o seu saco. E, sem pedir, acaba recebendo a ajuda de um bocado de gente.

A Trilogia Milleniun é um policial de primeira. Mas, apenas se os três livros forem analisados como uma obra única. E não se trata aqui de um "As Aventuras de Lisbeth Salander". Talvez, Os Homens Que Não Amavam as Mulheres é a melhor forma de nomear a obra completa. Porque, no fim das contas, é uma trilogia sobre a mulher. A forma como ela é percebida em oposição à sua capacidade real.