segunda-feira, 9 de janeiro de 2012

O Tempo da Delicadeza

Para a surpresa de Miguel, a conversa do trio fluía. Sílvia não comia carne e trocaram palavras sobre vegetarianismo. Celso era um onívoro consciente e lembrou de um livro sobre comer animais que havia lido. Miguel gostava de ler e pontuou que o autor desse livro era o mesmo de um outro muito bom que, por acaso, tinha acabado de virar filme. Falaram sobre cinema, MPB e o quanto nada entendiam de Delleuze. Conversaram sobre algum blog idiota, mas divertido, sobre o filme do Malick e a novela das seis. Discutiram sobre suicídio e pensaram sobre o quanto nós, seres humanos, não temos lógica nenhuma. Miguel se calou e o diálogo continuou pela psicologia, cervejas, as entediantes cidadezinhas do interior que eram obrigados a ir na temporada do fim de ano, restaurantes, lei seca, presentes de amigo oculto e sobremesas preferidas - o da Sílvia era arroz-doce, do Celso pudim com calda de ameixa. Silvia não conseguia entender alguém escolher ameixa como preferência. Olhou para Miguel em busca de endosso.

- Olha só como os seres humanos são ilógicos…

Miguel não completou porque Silvia riu. Achou graça nele ficar calado por alguns minutos e alguns temas e, do nada, voltar a falar de um assunto passado. Miguel gostou. Se encontraram poucas vezes, mas ela deve ter notado aquele comportamento como uma característica de sua personalidade. Ele confirmou que, às vezes, precisava mesmo de um tempo para concatenar as idéias. Silvia achou bonitinho e, de certa forma, autêntico. Chamou aquilo de tempo da delicadeza. O médico, há pouco mais de um ano, tinha chamado de transtorno de déficit de atenção. "Seu cérebro funciona de uma forma um pouquinho diferente. Normalmente, a gente tem substâncias que ajudam a lidar com o fluxo de pensamentos. A organizar, a priorizar. No caso do TDAH, existe um desajuste nesse processo". Miguel, desde então, também passou a chamar de transtorno de déficit de atenção. Foi um alívio. Ele e outros já tinham chamado de desorganização, distração, falta de foco, preguiça, suscetibilidade, mundo da lua e empurrar com a barriga. Despido da culpa, Miguel pôde se entender e criar suas estratégias. Descobriu que seu aprendizado é muito visual. Que para as coisas fazerem sentido na sua cabeça, precisava conhecer o contexto. Percebeu a sua dependência da motivação. Montou a sua forma de organização. Conheceu maneiras novas de liberar a energia acumulada por tantos pensamentos. Passou a confiar na sua criatividade e intuição. Aprendeu a sofrer menos. Assumiu e passou a usar a seu favor o fato de realmente precisar de um tempo para concatenar as ideias. Aos poucos, estava construindo o seu tempo da delicadeza. A condição estava sendo reinterpretada e se transformando em potência. Miguel sabia que...

- Ei, ei. Miguel!

Miguel viu os rostos de Celso e Silvia. Por um minuto, tinha esquecido que estava ali.

- Você estava falando…Dos seres humanos serem ilógicos...

Miguel franziu o cenho até reencontrar o fio da meada

-  É, estava... Vocês viram? Em menos de dez minutos nessa mesa, nossa conversa foi de Delleuze para arroz-doce sem nenhum aviso prévio. Olha só como a gente não tem lógica nenhuma.

Fazia sentido.