sexta-feira, 18 de novembro de 2011

Impróprio para Menores



"Buceta".

Na primeira vez que Nuno ouviu a palavra, estava sozinho em seu quarto. Chegou aos seus ouvidos pela voz grave do pai, ao ultrapassar a porta fechada do quarto ao lado. A voz não era frequente, mas era o mesmo ruído pesado. Algumas semanas atrás, Nuno chegou em casa aos prantos e machucado. O pai gritou sobre revidar, não levar desaforos para casa, resolver os problemas como um macho. Nuno se esqueceu dos ferimentos. A voz doía mais.

Deve ter sido esta a sensação da mãe. Após o “buceta",  ela chorou. Alto.

Alguém chorar depois de ouvir alguma coisa só pode ter um significado muito ruim ou muito bom. Na última vez que Nuno declarou “eu te amo” para a mãe, ela chorou. Nuno entrou no palco, ao lado de todos os seus colegas de sala. Juntos, gritaram um “eu te amo” sem muita sincronia. Fecharam-se as cortinas. Palmas, muitas palmas. Por uma fresta, Nuno conseguiu ver a mãe esfregar um lenço nos olhos. Quando se aproximou dela, viu todos os indícios. Maquiagem borrada, olhos avermelhados e cílios grudados. Mas o sorriso intrigou Nuno. A mãe explicou sobre o choro de felicidade. .

As lágrimas pós “buceta”, porém, não eram felizes. Os olhos, os cílios, a maquiagem, todas as pegadas estavam lá. O sorriso, não.

Mas os indícios não eram necessários. A voz do pai já deixava tudo muito claro.

Nuno, com dificuldade, pegou uma cadeira, colocou-a na frente de um armário imponente. Subiu, mas o armário continuou imponente. Ficou na ponta dos pés, esticou todo o corpo, o máximo que pode. Pegou um livro pesado e empoeirado que nunca tinha saído de lá. Tentou levá-lo para uma mesa, mas seus braços magrelos não deram conta do trabalho árduo. Nuno abriu o livro no chão. Poeira escondia letrinhas minúsculas. Folheava as páginas com pouca intimidade. Benzidina. Benzido. Benzil. Benzilhão. Mais para frente. Bulático. Bulbáceo. Bulbar. Mais para trás. Bucéfalo. Bucelário. Bucentauro. Bucha. Nada.

A cabeça de Nuno começou a doer. Se lembrou de um risco vermelho de caneta BIC. Um rabisco que obstruía sua plenitude. De todas as palavras do ditado, o risco denunciou a “muchila”. O certo era mochila. Talvez seja assim com “buceta”, pensou. O certo deve ser boceta.

De volta ao livrão. Bode. Bochecão. Bocelão. Bocelar. Bocelim. Bocelinho. Bocelino. Boceta. Enfim. Boceta. Caixinha redonda, oval ou oblonga. Caixa de rapé. Certo aparelho de pesca. Vulva. Nuno franziu o cenho. O pai nunca falou em pescar. Sempre foi misterioso, de poucas palavras, mas não podia ser possível que ele saísse para pescar sem que Nuno soubesse. Ou será que foram as caixas? Mas porque uma caixa ia fazer a mãe chorar? Ele a atacou com uma? E, afinal, o que é vulva, meu Deus? Vulturídeos. Vulturino. Vulturno. Vulva. A parte exterior do aparelho genital da mulher. Geniculado. Gênio. Genioso. Genista. Genital. Relativo a geração. Que serve para geração. Geotrópico. Geotropismo. Geração. Ato de gerar. Conjunto das funções ou fenômenos pelos quais um ser organizado produz outro semelhante. Cada grau de filiação de pai e filho. Linhagem, estirpe, ascendência.

Nuno dormiu sem entender.

No dia seguinte, Nuno, mãe e pai estavam sentados no sofá, como sempre fizeram. Assistiam à TV. A cada dia se afastavam mais. Talvez, daqui a uma semana, fosse preciso comprar um sofá maior. Ela estava em uma ponta, ele na outra e Nuno no meio. A tela exibia uma mulher mais velha e uma mais nova. Do nada, a mais velha começou a bater na mais nova. Bater de verdade. Deu um tapa, vários chutes, jogou ela no chão, continuou a estapear. Chamou-a de nomes que se Nuno falasse perto da mãe seria ele quem levaria o tabefe. Intervalo. Nuno olhos para os pais.

“O que é boceta?”

Expressões de espanto.

“Isso é coisa da sua família!" 
“Esses seus sobrinhos ficam ensinando bobagem para o menino!” 
“Ele só tem sete anos, pelamordedeus!” 
“Fica dando liberdade para fazer o que quiser!” 
“Você nunca está aqui” 
“Tudo que ele pede eu dou!”
 “Mas você nunca está aqui!”

Nuno decidiu nunca mais falar boceta outra vez

Um tempo depois, Nuno, apreensivo,  repetiu a palavra. A mãe e o pai disseram que iam se separar.

“É por causa da palavra?”
“Que palavra?”
“Aquela.”
“Aquela qual? Fala a palavra de uma vez, não sei o que você quer dizer.”
“Boceta.”
“O que?”

Expressões de espanto.

***

A mãe está sentada ao lado de Nuno. Assistem à TV. O sofá continua o mesmo, mas o pai comprou um novo. Hoje, o marido da mulher mais velha que bateu na mulher mais nova beijou uma terceira. E a esposa nem desconfiou.

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